Um ano de guerra na Ucrânia
Desfecho da sangrenta aventura de Vladimir Putin tem consequências não só para a Ucrânia, ou para outros países antes pertencentes à União Soviética, mas também para Taiwan e demais territórios cobiçados pela China
Um ano depois da invasão da Ucrânia, o mundo continua em busca de uma resposta para a pergunta: uma potência nuclear pode anexar o território de outro país impunemente? O desfecho da sangrenta aventura de Vladimir Putin tem consequências não só para a Ucrânia, ou para outros países antes pertencentes à União Soviética e ao Império Russo, mas também para Taiwan e demais territórios cobiçados pela China e por outras potências nucleares. Em razão do autoritarismo e da ideologia conservadora abraçada por Putin, a invasão também impôs um segundo dilema: até que ponto o Ocidente está disposto a defender a democracia e os valores liberais, ameaçados com a tentativa russa de subjugar a Ucrânia? O custo tem vindo na forma de inflação de energia, causada pelas sanções contra o gás russo, e da ajuda humanitária e militar à Ucrânia, que somou US$ 100 bilhões em 2022, e deve acrescentar valor igual ou maior este ano. Putin fez referência às duas questões em seu discurso sobre o Estado da União para o Parlamento russo, na terça-feira (21), feito para marcar o aniversário da invasão. O ditador suspendeu a participação da Rússia no último acordo de controle de armas nucleares ainda vigente entre ela e os Estados Unidos, o Novo Start. Firmado em 2010, o acordo limita em 1.550 o número de ogivas e em 800 o de mísseis, e prevê a realização de 18 inspeções recíprocas das instalações nucleares americanas e russas. Na prática, não muda muita coisa: nenhuma inspeção foi feita no ano passado, e o regime estava prejudicado desde o início da pandemia, em 2020. Mas a suspensão reforça a chantagem nuclear de Putin, no sentido de negar informações aos americanos sobre o estado de prontidão de seu arsenal estratégico. Putin repetiu sua premonição de que “a Rússia não pode ser derrotada”. Há um ano, no primeiro discurso logo depois de lançar a invasão, Putin ameaçou: “Quem quer que tentar se interpor no nosso caminho ou mais ainda criar ameaças para nosso país e nosso povo deve saber que a Rússia responderá imediatamente, e as consequências serão tais que vocês nunca viram em toda a sua história”. Desde então, com formulações diversas, e com inspeções do estado de prontidão do arsenal nuclear, Putin tem mantido a ameaça nuclear presente. Essa ameaça apareceu a cada momento em que o Ocidente deliberava sobre os pedidos de armas mais pesadas e sofisticadas da Ucrânia. A ajuda começou com drones e foguetes portáteis, evoluindo para canhões, baterias antiaéreas, blindados, mísseis de mais longo alcance e, finalmente, tanques de batalha. Em cada uma dessas etapas qualitativas, os 54 países que formam o chamado Grupo de Contato de Ramstein, liderado pelos Estados Unidos e pela Otan, cruzaram linhas vermelhas desenhadas por Putin, sem que a ameaça nuclear se materializasse. A discussão agora é em torno do pedido de caças, especificamente os F-16 americanos, que muitos dos 30 países membros da Otan possuem. A Polônia, que por sua história e situação geográfica se sente vulnerável ao expansionismo russo, tem defendido abertamente o envio dos aviões. Mais uma vez, os aliados resistem, por receio de serem responsabilizados por uma “escalada”, um outro nome para um ataque nuclear russo, que desencadearia o envolvimento direto da Otan, por causa das repercussões do uso de armas de destruição maciça nas vizinhanças dos aliados europeus. A cartada nuclear se torna cada vez mais a única opção de Putin conforme ele vai colecionando insucessos no terreno. A suposta grande ofensiva russa esperada para o final do inverno setentrional, ou seja, de agora até o fim de março, está se mostrando um fiasco. A grande concentração de tropas russas na fronteira, temida pela inteligência militar ucraniana, simplesmente não aconteceu. E se a tática era uma ofensiva gradual, também não tem surtido efeito. Centenas de soldados russos e ucranianos morrem todos os dias no front, sobretudo em Bakhmut e em Vuhledar, no leste da Ucrânia, mas o avanço russo, quando ocorre, tem sido, literalmente, de metros. Desde meados do ano passado a Rússia não toma nenhuma cidade ucraniana. As Forças Armadas ucranianas têm pagado um alto preço, em perdas humanas e de munição, para defender essas duas cidades, não por seu valor operacional e tático, que é muito pequeno. Mas porque perceberam a decisão de Putin de tomá-las a qualquer custo para ter alguma vitória a apresentar precisamente agora, no aniversário da invasão. Esse “a qualquer custo” representou uma oportunidade de impor pesadas perdas aos invasores, e foi o que aconteceu. A título de exemplo, em Vuhledar, segundo a inteligência britânica, a 155.ª Brigada de Infantaria Naval russa se tornou inoperante em razão das baixas sofridas. Uma brigada reúne 5 mil soldados, e essa era uma formação de elite. As mortes de seus integrantes atingiram a média de 300 por dia. Em Bakhmut, além da média de 724 mortes por dia, os insucessos da campanha causaram também um dano político para os russos. O Grupo Wagner, uma empresa privada de mercenários cujo proprietário, Yevgeny Prigozhin, é muito próximo de Putin, de quem foi cozinheiro, está à frente da campanha. Prigozhin e o comando das Forças Armadas regulares russas passaram a disputar os méritos de uma eventual tomada da cidade cercada por três flancos. Prigozhin acusou publicamente o Ministério da Defesa de privar os mercenários de munição. A energia gasta nessas disputas políticas, aliada à falta de munição, de armas e de militares bem treinados e com moral elevado, certamente ajuda a explicar a ausência de resultados no terreno. O oposto a quase tudo isso pode ser dito dos ucranianos, treinados e equipados pela Otan e lutando até a morte para defender seu próprio país. O ponto em comum é a falta de munição. O fato é que nenhum país está atualmente preparado para uma guerra tão prolongada, de maneira que criar as condições para fabricar munição e armas para fornecer à Ucrânia é uma das discussões centrais na Otan. A Rússia, de sua parte, tem comprado drones e mísseis do Irã. A Coreia do Norte tem fornecido foguetes e mísseis para o Grupo Wagner e munição para as Forças Armadas regulares russas, segundo a Casa Branca. Putin tem pedido apoio militar também da China, que até agora tem evitado se envolver para além da compra de petróleo e gás russos. A visita de Wang Yi, o chefe da diplomacia chinesa, a Moscou, na quarta-feira, foi mais um capítulo nessas tratativas. Os EUA e a Europa têm pressionado a China a não dar esse passo. Em outros tempos, Wang Yi se reuniria apenas com o chanceler russo, Sergey Lavrov, seu equivalente na hierarquia dos dois governos. O fato de ele ter sido recebido por Putin, e ainda por cima em uma mesa pequena, e não naquela mesa de 6 metros que costuma usar, mostra duas coisas: a assimetria criada entre os dois países a partir da invasão da Ucrânia, que transformou a Rússia num fornecedor de matérias-primas para a China, e o desespero do líder russo. Há uma análise de que as gestões dos Estados Unidos e dos principais governos europeus perante a cúpula chinesa têm se concentrado em convencer a China a advertir Putin a não empregar armas nucleares. Essa seria a condição ocidental para não adotar represálias contra a China por seu apoio econômico e político à Rússia. Até que ponto isso pode funcionar, na medida em que Putin sentir uma eventual derrota na Ucrânia como ameaça existencial, é uma incógnita. Três semanas antes de invadir a Ucrânia, Putin firmou com Xi Jinping em Pequim uma declaração conjunta de “amizade sem limites”. Mas é óbvio que ela tem limites, e Putin sabe disso. Para a China, fortemente dependente de exportações, não interessa a desestabilização da economia mundial. E nem se ver associada a uma potência nuclear imperialista. Por outro lado, no contexto geopolítico, interessaria, sim, à China, o estresse na coesão dos aliados do Ocidente, aí incluídos adversários como Japão, Coreia do Sul e Austrália, que se imaginava que a invasão da Ucrânia poderia causar. Mas não causou. Ao contrário, sedimentou essa coesão. Por último, a invasão reforçou a divisão entre democracias liberais, de um lado, representadas pela Ucrânia, e autocracias conservadoras, de outro, personificadas em Putin. No discurso, o ditador russo afirmou que o Ocidente está desafiando o conceito de que uma família deve ser, na visão dele, formada por um homem e uma mulher. E foi mais longe: “A Igreja Anglicana está considerando uma versão de um Deus de gênero neutro. Eles não sabem o que estão fazendo”. A partir da intensificação dos protestos pró-democracia em 2011, Putin se aliou à Igreja Ortodoxa Russa e adotou esse discurso homofóbico, que se materializou em leis aprovadas no Parlamento contra adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Ao bater nessa tecla, ele procura arregimentar apoio de correntes conservadoras ao redor do mundo. Tem funcionado. Ao visitar Putin em Moscou, oito dias antes da invasão, o então presidente Jair Bolsonaro declarou, ao lado do ditador russo: “Compartilhamos valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família”. Essas posições, por outro lado, reforçam a clivagem cultural entre as autocracias e as democracias, e servem de incentivo para a opinião pública do Ocidente, em seu enorme sacrifício econômico em apoiar a Ucrânia. Todos esses aspectos representam um desafio para um governo como o do presidente Lula, no seu propósito de desempenhar um papel no conflito.